Sentei aqui com a ideia de produzir um relato que tenha significado para o momento presente e para o futuro, quando quem sabe esses meninos e meninas venham a ler esse texto em busca de algum resgate de memória. Eu me pergunto o que ficará para eles? Pois, eu mesma me questiono quais lembranças tenho de quando tinha cinco e seis anos?
Como professora do Grupo das Letrinhas, o grupo que no próximo ano vai para o Ensino Fundamental, reflito constantemente sobre: Como é uma criança nessa idade? O que podemos esperar dela? Que competências tem? Que desafios são bons? Que desafios lhes são impossíveis ou difíceis? O que se deseja para essa criança durante o último ano da Educação Infantil e por que? Como as famílias podem me ajudar? E por aí vai, porque eu não tenho parada nos assuntos que me são paixão.
Todos os anos busco compreender o grupo antes de montar o planejamento. Esse ano o trabalho seguiu o rumo das ampliações, em todos os quesitos que conseguíssemos. Então comemos coisas diferentes, fizemos passeios a lugares novos, assistimos pequenos vídeos motivadores da ação em grupo, ouvimos músicas diversas, conversamos sobre profissões e também sobre o inimaginado/inusitado (morte e medos) e, também vivemos desafios científicos de “O que é, o que é?”, com a participação das famílias. Ah, algumas lições de casa também foram feitas, na expectativa de ensinar os pais como “não fazê-las”, hehehe.
As crianças passaram a compreender o que é uma aula com horário de começo e fim. Entendem que precisam ir ao banheiro, beber água e pegar o material antes de virem para a sala. Foram estimuladas a manter o foco da conversa no assunto em discussão – esse é um desafio quase tão difícil quanto levantar a mão para falar. Também as ensinamos a organizar a sala antes de saírem.
Todos os dias depois de conversarmos um pouco ou de ler as listagens que eles amam ou assistir um filme, a gente sentava para fazer uma atividade escrita ou desenhada. Quem ia terminando podia ou pegar um jogo do nosso armário ou um livro “ensinador” (assim chamamos os livros da prateleira do nosso grupo, que não são os da biblioteca). Havia um jogo de percurso que o grupo disputava, que nos motivou a criar o NOSSO JOGO.
Definimos juntos se faríamos o percurso quadrado ou redondo ou em S. Dividimos os espaços e fizemos um exercício de seriação numerando as casas. Propusemos que cada criança pensasse sobre seus heróis e anti-heróis. Logo eles desenharam, recortaram e colaram nas respectivas áreas, que eles nomearam como áreas do bem e áreas do mau. Depois decidimos objetivos, regras e estratégias. Então cada um fez o seu “pino” e eu trouxe os dados. Resolvemos que jogaríamos dois dados por vez, assim eles têm que somar, o que gera boas discussões. Muito cedo descobrimos que só cabem 4 pinos em cada casa, o que limita o número de jogadores.
Foram quase duas semanas fazendo o jogo até podermos começar a usar. Quanta euforia. E, nos últimos dois meses o jogo foi usado diariamente. Vejo meus meninos e meninas se revelando através dele. Alguns se mostraram mais durante a produção, outros se mostram mais agora ao competir, ou não querendo competir.
O percurso tem um COMEÇO e um FIM. Assim como a passagem das crianças pela escola. No início há uma área do bem, que eu associo ao período de adaptação, quando eles são pequeninos e recebem bastante acolhimento, abraços e beijos. Mesmo assim, bem no início, na casa 11 há um Saci que proporciona a frustração de retornar ao início, bem como a cada necessidade de readaptação, depois dos feriados, férias, perdas quando precisam mais acolhimento.
Depois há duas áreas do mal, que eu associo aos desafios vividos, tanto aqui na escola como fora dela. Esses desafios são saudáveis frustrações e foram estruturadores da individualidade, autonomia e percepção do outro e do grupo. Algumas escadinhas permitem que o jogador pule casas e se adiante, assim como, aqui na escola eles saltaram pelo tempo e pelos espaços, conhecendo cada atividade, canto e recanto, quando preparados para tal.
A palavra “mal” foi atribuída pelas crianças que fizeram no jogo um exercício de classificação. Importante perceber que só se chega ao final do jogo passando por essas áreas. Alguns conseguem mais rapidamente, outros mais lentamente, mas cada um do seu jeito.
Mas quase no final do jogo há uma casinha que representa a Kids, quem chega nela pode saltar para o final, e é o vencedor. Não importa muito quem é o primeiro, o importante é que todos chegam ao final. Sendo assim, o primeiro tem que esperar terminar o jogo e, espera.
As discussões surgem a todo momento. O jogo traz consigo novos conflitos a resolver. Quem jogou ontem não pode jogar hoje? Quem zuar do amigo sai do jogo? Quem é o primeiro a jogar, o segundo e o terceiro… ; não necessariamente em sentido horário, oras bolas, porque nos amarrar nesse padrão? Pode ou não pode somar pelo jogador da vez? Pode deitar em cima do jogo? … E por aí vai.
Me encanta como a crianças gostam de coisas simples, papel pardo, desenhos, copinhos de yacult e dados. Nosso jogo de percurso não é mais do que isso, mas tem para as crianças um significado grande. É deles! Feito por eles, por isso, precioso.
Aprender a jogar é importantíssimo. É aprender a viver. O medo do jogo representa o medo de não corresponder às expectativas. De quem? Jogar, esperar a vez, compreender regras, respeitar o rival, empatar, perder e até ganhar implica aprendizagem. Resgatar a humildade ao ganhar, aconchegar o perdedor, aceitar o empate e, usufruir alegremente das partidas, pelo simples prazer de jogar, pelo simples prazer de viver.
Meus meninos e meninas jogaram comigo em 2015. Fomos companheiros, construímos uma história juntos. Cada um de nós teve suas vitórias, seus empates e também perdas. Rimos muito e choramos algumas vezes. Aprendemos que quem fala alivia os medos, aprendemos que os abraços aliviam as tristezas, aprendemos que tem hora para rir e barulhar e, tem hora que temos que fazer silêncio. Eu amei e me preocupei, montei desafios e estratégias para que cada um deles conseguisse chegar bem até aqui e “para o infinito e além! ”
Para mim a maior perda vem agora. Eles vão embora e eu saio do jogo de suas vidas. Desejo que cada um deles siga seu percurso respeitado em sua índole e estimulado em suas capacidades. Que cresçam para o bem. Que façam a diferença no planeta. Que sejam felizes!
Regina Pundek
2015