Registro da professora de Literarte:
Desde que o ano começou eu estava incomodada com meu momento com as crianças do Fundi 1. Um encontro somente por semana é pouco para conseguir entender os grupos, as crianças e as estratégias necessárias para atingir os objetivos da contação de histórias e da literatura.
Quando terminavam os momentos eu estava chateada, pois não percebia alinhamentos, adequações, envolvimento. O calor das tardes de verão e algumas crianças com sono pós almoço apontavam a necessidade de refletir, rever estratégias. Me perguntava se desenhar tira ou permite a concentração na narrativa? Algumas crianças pedem para ser desenho livre… costumo dizer não, mas fico confusa, com vontade de experimentar e depois questionar a criança em questão.
Eu tinha também outras questões:
Será que a historinha do Pequeno Príncipe é difícil para as crianças de 6 a 9 anos? Foi a Belinha quem trouxe o livro, toda feliz, e pediu para eu contar aos amigos. Falou que é um dos seus preferidos. Claro que eu conhecia a história, mas eu não conhecia o grupo de 2022 da professora Karina Pereira da Silva . Crianças novas em adaptação, crianças já da escola no retorno de férias, todos de máscara devido a pandemia, todos aprendendo a ser grupo, esse grupo.
Mesmo no grupo do professor Rodrigo as coisas não iam bem. Eu me percebia meio frustrada. E, olha que eu planejo com antecedência cada poesia, cada história, guloseima. Mas, me irritava com barulhos, falta de concentração, desinteresse… sei lá. O que estava acontecendo?
Foi a necessidade de abrir espaço nas tardes, na minha agenda de diretora pedagógica, para atender famílias, que exigiu uma mudança do meu horário de professora para o período da manhã. Conversei com os professores do F1 na reunião de terça feira e eles alteraram a rotina das crianças de uma forma a não os prejudicar. Fiquei com as quartas de manhã. Eu não sabia como seria, mas fiquei com boas expectativas. Ao menos uma questão estava resolvida, pois de manhã, com certeza é mais fresco do que a tarde.
Então, nesta quarta-feira, o que aconteceu foi tão gostoso que preciso registrar para tentar entender o catalizador da mudança.
Decidi que faríamos uma roda, sentados no chão e que ninguém ia desenhar. Queria testar a capacidade de concentração. Fomos para lugares novos. Com a turma do Rô fomos lá no espaço aberto em frente ao Bamboo. A cozinha barulhava bastante, com liquidificador a todo vapor. A turma que estava no espaço ao lado caprichava para favorecer nossa necessidade; queridos!
Com a turma da Karina ficamos na parte larga do corredor de entrada. Em termos de temperatura e aconchego, foi muito bom.
Montei meu pequeno altar: vela, incenso, pedra e um copo de água. Depois distribui frutas cristalizadas. O Arthur Calls disse que tem gosto de Natal. Eu disse que acho que é um sabor antigo. Muitos gostaram, fiquei espantada, não esperava.
Então, falamos dos 4 elementos e também falamos dos sentidos: audição, visão, paladar, olfato e emoção – que é o que a história traz.
A poesia do dia era O BOLO do Carlos Drummond de Andrade, afinal foi uma semana de muitos aniversários.
Na sequência fiz o resgate dos capítulos já lidos do Pequeno Príncipe e foi tão bom constatar como as crianças sabiam e estão gostando. Conseguimos ler 5 capítulos e depois fiz uma provocação tipo cenas dos próximos capítulos. Acho que colou. As 3 irmãzinhas recém matriculadas me olhavam sem piscar. Algumas crianças deitaram respeitando o círculo e o pequeno altar no meio. Foi muito gostoso. Saí do espaço pisando leve, sentindo alegria.
Depois fiquei pensando no João Victor e na Paulinha. Ele me pediu para desenhar e reclamou quando eu disse que naquele dia seria somente ouvir. De qualquer forma achei interessante porque em 2021 ele raramente queria desenhar na literarte. Quanto a Paulinha, percebi que controlar o corpo e a mente é mais difícil sem o recurso do desenho. Mas vou tentar mais vezes para avaliar melhor.
No outro grupo a média de idade é um tiquinho maior. Separei uma poesia do Mário Quintana que me emociona: O ADOLESCENTE. Os maiores “se acham”; gostaram! O Gael não queria que eu lesse a segunda vez, mas eu contei pra ele: tu és novo no grupo, então não sabes, poesia é pra ler duas vezes pra entrar no coração. E li. Claro, que ele não vai gostar de poesia assim tão rápido, mas eu não vou desistir. Lembrei que no final de 2021 o João Victor pediu para eu ler a terceira vez uma poesia, e depois todos aplaudiram. Ah, o Gael vai chegar lá, tenho certeza!
Propus que repetissem um chamamento que inventei na hora: “QUE A ENERGIA VITAL QUE HABITA EM NÓS NOS FAÇA PORTADORES DE ALEGRIA E DE ESPERANÇA”
O momento atual, a guerra Rússia e Ucrânia, tem sido trazido por algumas crianças. Então, escolhi uma historinha condizente: DAQUI NINGUÉM PASSA, de Isabel Minhos Martins e Bernardo P Carvalho. As ilustrações são muito, muito lindas. O Thiago passava o dedinho em cima dos desenhos rindo e nomeando. O livro tem poucas letras. Todos deitados com a cabeça voltada para o centro onde coloquei o livro, observavam e falavam sobre o que viam. A narrativa fala de um general que não quer que ninguém passe para a página do lado direito, quer que fique em branco porque ali ele vai deixar marcada para a humanidade a sua história. Falamos sobre ganância, egoísmo, intolerância, obediência, poder e brigas entre adultos.
– Como essas pessoas podem resolver esse problema? Questionei
– Expulsando o soldado!
– O soldado é mau?
– Acho que não. Ele é obediente.
– Concordo. Mas, vamos pensar mais um pouco: Eu sou má? Você é mau?
– Somos todos maus e bons! – menino de 10 anos
– SIM! – Pequeno coro
– Também acho. E como fazemos para o conviver sem brigas?
– Fazer o nosso bem ganhar do nosso mal – outro menino de 10 anos.
– Eu digo para minha mãe: sinta o bem, plante o bem, colha o bem.
– Quando tu dizes isso pra ela, Thi?
– Quando ela está triste.
– Que especial!
– Vamos voltar ao soldado. Ele é mau?
– Acho que não.
– Então, para que expulsá-lo?
– Para poder passar para a outra página.
– Entendi, daria certo, mas acredito que tem um jeito melhor de resolver esse impasse. Alguém tem outra ideia?
– Eu tenho. O nosso jeito!! – menina de 10 anos.
– Qual jeito?
– Ué, fazer assembleia.
– Ah, e será que o general aceitaria? – provoquei
– Acho que não?
– Por que não?
– Porque ele quer ser famoso e fazer parte da história.
– Verdade. Quem vocês conhecem que faz parte da história da humanidade? Vamos tentar pensar nas mulheres primeiro?
– Anne Frank… Malala… Dandara… Marie Curie (UAU, fiquei muito prosa em ouvir todos esses nomes)
– Agora vamos falar dos homens?
– Pode ser gente que fez coisa ruim e ficou famoso, Rê?
– Acho que sim, porque também ficou para a história, né?
– Hitler!
– Quem é? – quis saber um pequeno de 6 anos.
– Aquele desse desenho (desenhou a suástica nazista)
– Sim. Ele liderou uma guerra muito, muito grande e triste.
– Algum homem do bem?
Nessa hora a Sofia chegou. Era o dia de seu aniversário de 11 anos! Todos levantaram para abraçá-la enquanto cantávamos parabéns. A Sofia é Maré desde a barriga da mãe, que era professora aqui. Delícia de encerramento do meu momento com essas crianças! Na próxima quarta vou resgatar o assunto do general, pra ouvir as alternativas das crianças sobre o caso.
Quando eu já estava de saída o Alexandre gritou: Galera, abraço na Rê!!
E viramos um cacho de uvas, ops cacho de abraços amontoados!”
Regina Pundek