Um educador nunca o é sozinho. Um educador é a soma de suas experiências e de suas referências. É legado de seus autores.
Eu sou leitor voraz de autores das mais diversas logias: Filósofos, sociólogos, antropólogos, educadores, líderes comunitários… Há algo a aprender com tanta gente bacana, que registra profundas reflexões sobre a vida, a humanidade, o planeta. Há autores que comungam da utopia que queremos estabelecer como lugar-comum. Há outros que pensam a sociedade com outra perspectiva. E há aqueles que adoçam a nossa alma, ao passo que nos provocam. Esses últimos, de forma muito sublime e carinhosa, com palavras afáveis e de escrita lírica, nos dão um soco no estômago. Daqueles bem dados. E é sobre três deles que quero narrar neste relatório de grupo.
Neste primeiro semestre o foco do trabalho no nosso grupo foi o pertencimento. Muito mais do que acolhimento, pertencer é fazer parte. Engajar-se em um grupo; Alinhar-se aos ideais coletivos; Agir para e com o grupo; Conectar-se; Ser indivíduo e ser coletivo.
O grupo em questão é formado por dezoito crianças. Cinco deles estão no último ano da Maré, entrando na pré-adolescência (alguns deles já dizem que são adolescentes, vejam só!). Uma criança veio de outro país para fundamentalmente conhecer a nossa cultura. Outra criança é nova na escola. Cinco acabaram de chegar no Fundamental. Outras cinco buscam reafirmar seu espaço no grupo, porque amigos antigos saíram da escola. E três crianças trazem a neurodiversidade para o grupo, o que desencadeia a grande chave de uma educação transformadora: É preciso uniformizar a todos?
Como engajar crianças tão diferentes, de idades tão distintas, com habilidades tão discrepantes, e em fases de desenvolvimento psíquico tão desniveladas, em um mesmo grupo?
Em primeiro lugar, recorri a Janusz Korczak. Em seu livro “Quando eu voltar a ser criança”, o autor traz o ponto de vista de uma criança sobre os acontecimentos cotidianos. A leitura é um exercício de empatia, de conseguir se colocar no lugar de uma criança frente às mais diversas situações. Para que tenham uma ideia, eis um trecho:
“Aparentemente, estou de olhos abertos, olhando para o professor, mas o que vejo são os campos de gelo – nada além de gelo e neve. Nenhum arbusto, nenhuma plantinha. (…) Havia silêncio na sala enquanto o professor lia. Uma vez alguém lá atrás sussurrou alguma coisa baixinho, o professor nem olhou pra ele, para fazê-lo calar a boca”.
Portanto, a primeira coisa que eu deveria fazer era compreender as expectativas de todas as crianças ali. Para algumas, o importante era se juntar no grupo dos mais velhos da escola, e achar que poderia vivenciar uma versão de High School Musical, com direito a namoricos e tudo o mais. Para outras crianças, o importante era a pedra que encontrou no quintal. Atividade nenhuma no dia seria mais interessante do que a bendita pedra que, para nós, adultos, é igual às outras trocentas que encontramos por aí. Mas naquele momento, naquela circunstância, para aquela criança tão pequena, a pedra era mais importante. Para outra criança, conseguir sentar-se à mesa para tomar o lanche já seria o grande desafio do dia. E para outro, montar um algoritmo de multiplicação com números decimais era assaz difícil (confesso que pra mim também é). Para outra criança, tão egocêntrica, o amigo que se sentou na cadeira que ele queria sentar já é motivo para fazer surgir um choro que misturava frustração e manha.
Compreender todas essas expectativas é tão, tão bonito, que os convido a tentar. Sem romantizar a loucura que é um dia-a-dia na escola, quando nós, adultos, nos colocamos no lugar da criança e enxergamos o mundo a partir de suas perspectivas, tudo se torna claro. Fica evidente o que cada uma precisa. Acendem-se as luzes sobre qual estrada cada uma precisa seguir. Você passa a perceber com lucidez quais desafios preparar para que cada criança atinja aos seus próprios objetivos.
E assim, desenham-se as rotinas de atividades do grupo.
Mesclando atividades com o grupo todo e atividades em pequenos agrupamentos, as crianças foram construindo sua autonomia (objetivo final para toda e qualquer criança). As crianças que não falavam na roda grande por vergonha ou timidez tinham a oportunidade de exercitar seu direito à fala nos agrupamentos menores, mais acolhedores. As crianças maiores passaram a ter tempos só pra elas, e saciaram seus desejos (e necessidades) de formar um grupo “dos grandes”. As crianças que precisavam desenvolver autonomia sobre qual espaço ocupar, ou organizar o próprio lanche, ou arrumar sua mesa e seus materiais, ganharam tempos mais flexíveis. As crianças que precisavam fortalecer vínculos ganharam novas possibilidades. Algumas crianças foram tutoras de outras nas atividades do Fazer. Com novas configurações de agrupamento, todos saíram ganhando.
A partir desta abordagem, desenvolvem-se habilidades das mais diversas naturezas: Sociais, físicas, emocionais, anímicas e cognitivas. Neste vai-e-vem de agrupamentos surgem as oportunidades de aprendizagem dos conteúdos formais e dos não-formais.
Como exemplo, posso citar o estudo de Ciências, que tratamos em uma reunião com vocês. Lembram do vídeo do pai que questionava a postura científica da sua filha?
Bem, no nosso grupo algumas crianças aprenderam um bocado sobre fotossíntese, decomposição de matéria orgânica, a diferença entre processo físico e processo químico, unidades celulares, átomos e moléculas. Outras crianças precisavam de mais concretude, então estudaram o minhocário e o plantio de sementes, para acompanharem processos de decomposição e germinação. Outras crianças aprenderam com a mão-na-massa, picando folhas, quebrando galhinhos, enchendo o lago, regando as plantas. Em todas as situações estimulamos as perguntas das crianças, ao passo que fazíamos nós perguntas geradoras (aquelas que encaminham para um pensamento, e não para uma resposta), e mais importante, para a experimentação. Mesmo o grupo que trabalhou conceitos abstratos precisou experimentar e testar as suas hipóteses. Senão, de que maneira se daria uma postura científica sobre a vida?
E assim aconteceu nas outras áreas do conhecimento. Com a matemática (que envolveu desde o reconhecimento dos números à multiplicação com 03 casas decimais), com a Língua Portuguesa (da alfabetização ao estudo das classes gramaticais), Geografia (da alfabetização cartográfica à comparação de vegetação e clima dos estados brasileiros), História (da elaboração da divisão do tempo ao estudo da nossa colonização), e assim por diante, reforçando que cada criança aprendeu o que era necessário para si, e o que estava pronta para aprender.
Esse trabalho só conseguiu ser realizado levando em conta o segundo autor que cito aqui: Rubem Alves.
No rol das pessoas que deveriam ser “imorríveis”, como diz a Regina, Rubem escreveu:
“Sugiro então aos professores que, ao lado de sua justa preocupação com o falar claro, tenham também uma justa preocupação com o escutar claro. Amamos não a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito, a escuta bonita é um bom colo para uma criança se assentar…”
Somando, em entrevista, Rubem disse:
“Eu estou pensando em propor um novo tipo de professor. É um professor que não ensina nada. É um professor de espantos. O objetivo da educação não é ensinar coisas, porque as coisas já estão na internet, estão por todos os lugares, estão nos livros. É ensinar a pensar. Criar na criança essa curiosidade, a alegria de pensar!”
Rubem não poderia ter sido mais generoso. A combinação escuta + espantos é infalível! Quem não quer aprender algo que seja do seu interesse? Quem não gostaria de saber mais sobre algo que lhe desperta a curiosidade? E quem não se proporia a conhecer algo que a desafie?
Ao educador, cabe a escuta. E a fala, quando é para fazer perguntas e provocações. “Como você acha que isso funciona? Por que essa coisa se transforma na outra? Isso está vivo? Do que você é feito?”.
Abordagem definida, estratégia de agrupamentos resolvida, faltava o viés que uniria o grupo. Recorri ao terceiro autor que lhes apresento hoje: Ailton Krenak.
Em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, o líder indígena decreta:
“Enquanto isso, a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta (…). São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes – a sub-humanidade. A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo.”
Uau!!! Ali não só estava explícito o que de fato a educação deve ser, como para que finalidade.
E o caminho estava traçado: Um pesto de manjericão fresquinho, uma vitamina deliciosa de banana, uma guacamole irresistível. Espantos.
Então, a grande pergunta que fiz às crianças: “E se plantássemos mais coisas de comer na nossa floresta?”.
As crianças gritaram, entusiasmadas. Estavam com os olhos brilhando. Desejosas de mais delícias que a terra pode trazer. Agruparam-se em equipes de responsabilidade e dividiram a floresta em pequenas estações de trabalho para transformarmos o espaço em uma agrofloresta.
Na minha cabeça, rapidamente se estabeleceram quais conhecimentos as crianças precisariam construir para ativar seus canteiros agroflorestais. Mais ainda, me entusiasmava orientar um projeto de tão forte potência planetária. A agrofloresta, tão ancestral, é o futuro!
Ali me dei conta de que o adulto educador é aquele que se entusiasma junto. É aquele que se sujeita a fazer com, e não fazer para.
E neste percurso, lembrei da vez em que conheci Ailton Krenak em um evento (eu nem sabia quem ele era, fui no evento para ouvir José Pacheco – alguém que também recomendo que vocês leiam).
Naquela roda de conversa, Krenak perguntou para a plateia o que faz um indígena adulto quando está acompanhando uma criança indígena nas andanças pela mata.
“Ele ensina onde se deve pisar” – disse alguém da plateia.
Ailton, do seu jeito doce, respondeu:
“O adulto caminha mais devagar, na velocidade dos passos da criança”.
Vamos experimentar?
Abraços carinhosos,
Rodrigo