Em cursos e coletivos de educadores dos quais participamos, as pessoas me perguntam: Como é possível dar aula para crianças de idades tão diferentes?
Imagino que essa seja uma dúvida de muitos de vocês também. Então, na carta deste semestre, eu vou explicar.
Tudo começa pelo entendimento de que estamos lidando com seres humanos. Eles vêm antes do conteúdo. Pra ser professor, é mais importante entender de gente, do que saber quais são os afluentes do Rio São Francisco (que, de fato, não tenho na memória).
Iniciei o semestre com olhares e ouvidos atentos. É preciso escutar. É preciso enxergar em profundidade. O que cada criança precisa aprender?
Uma precisava aprender divisão com dois números no divisor. Outra precisa aprender a organizar seus pensamentos no papel, e a fazer registros claros. Para outra criança, o maior desafio era socioemocional: Ele precisava aprender a controlar sua agressividade. Outra criança necessitava de estímulos corporais para poder se expressar. Outra criança precisava aprender a ler mapas. Outra, a lavar as mãos sozinha antes de comer. Cada um com seu desafio.
Gosto de começar o semestre trabalhando as questões coletivas. Fortalecendo o grupo, fortalecemos os indivíduos. Além das necessidades, há outra coisa que precisa ser determinada: os desejos. Entender os desejos e as necessidades, e como articulá-las em prol da coletividade, é, sem dúvida, o maior mérito do nosso trabalho.
Não sei se comparo esse processo com uma orquestra ou com caldeirão de bruxa. Cada leitor está agora incumbido de encontrar a metáfora que mais cabe. O fato é que, sem esse olhar e essa escuta torna-se impossível trabalhar com um grupo tão diverso. Nem todos têm o mesmo ponto de chegada a alcançar, porque nem todos saíram do mesmo ponto de partida. Fácil, não?
Então, iniciamos os estudos sobre território, um desejo que a pandemia engavetou. Começamos bem aos poucos, quando um acontecimento abruptamente bateu à nossa porta: Alguém havia plantado na rotatória da esquina da escola. O que estava planejado para acontecer dali a um mês, precisou acontecer naquele dia.
– Vamos lá ver, Rô? – convidou o menino que viu a placa e as mudas.
Aceitei o convite, e rapidamente reelaborei o planejamento. Começara ali o nosso projeto de ocupação de espaço público!
Plantamos algumas árvores também, para fortalecer o Perdão à Terra, que havia plantado abacateiros na rotatória. Entretanto, a Prefeitura mandou retirar todas as mudas. Inicialmente, todos sentimos uma profunda tristeza. Depois, veio a indignação. Por fim, a ação!
Estudamos sobre iniciativas de coletivos em espaços públicos, conhecemos as leis do município, fizemos medições pelas redondezas, aprendemos sobre a arte urbana. E a “mágica” acontece: Algumas crianças tinham o desafio de ler e fazer síntese; outras tinham o desafio de mapear a região; outras tiveram que aprender algumas classes gramaticais para desvendar as leis; outras foram apresentadas aos números decimais para calcular o dinheiro do nosso caixa; outros aprenderam sobre unidades de medida para verificar se nossas calçadas estão de acordo com a lei (não estão!).
Para dar conta de todas essas aprendizagens, esgotei possibilidades de metodologias ativas, que incluem rotinas de pensamento, tarefas de desempenho e avaliação formativa (traduzindo: Metodologias nas quais a criança vai construindo seu conhecimento a partir de materiais que estruturam o seu pensamento – imagens, sons, vídeos e textos / Tarefas que as crianças desenvolvem sozinhas, para verificarmos seu nível de compreensão sobre determinado assunto / Autoavaliação escrita e avaliação visível, na qual a criança resgata seu histórico de aprendizagem, e percebe o quanto avançou em determinado conteúdo, e compreende quais serão seus próximos passos). Ufa!
Esse percurso teve momentos inesquecíveis, de ações observáveis (traduzindo: Atividades nas quais observamos o grau de compreensão das crianças), como a visita do vereador e a visita do José Walter. Dois golaços deste semestre! Nessas ocasiões, as crianças demonstraram não apenas conhecimento sobre o que estudaram, mas que se reconhecem como cidadãs. E essa condição de cidadania só foi possível porque este é um dos pensamentos que alicerçam a nossa escola: Somos todos cidadãos planetários!
Entendam que tentar ocupar um território de adultos (onde só é possível transitar tranquilamente de carro), em um sistema que alija a criança de sua condição de cidadã, é um ato de coragem. Ou loucura. Ou ambos.
Voltando nosso olhar para as crianças, vejam que movimento interessante aconteceu: Um grupo tão diverso, com extremos em muitos aspectos, se reconheceu coeso no espaço “lá de fora”. A rua é democrática, é para todos, e não faz distinção entre as pessoas. De repente, como uma mágica muito bem elaborada, tínhamos um grupo. 14 crianças que se viam como iguais, ocupando aquela rotatória, que é tão pequena aos nossos olhos, mas gigante para elas!
Do coletivo, voltamos ao indivíduo. Eis que pergunto às crianças: O que vocês querem aprender?
Surgem daí, os projetos de pesquisa individuais (ou em duplas, se as crianças desejarem). Umas querem saber sobre aparelhos eletrônicos, outras querem saber sobre carta Pokémon, outras têm curiosidade sobre a origem do desenho, outra quer estudar o vôlei, e assim vai.
Separo os desafios para cada um, de acordo com o tema escolhido. Neste semestre, trabalhamos pesquisa teórica (leitura e síntese), confecção de mapas mentais para apresentar o que aprenderam, e uma parte prática (que pode ser artística).
É delicioso ver como os olhos brilham quando eles vão pesquisar o que querem descobrir. Quem não curte ler, devora os textos. Quem não é muito a fim de desenhar, se empolga ilustrando os mapas mentais. Quem não gosta muito de calcular, se esbalda com a linha do tempo do tema do seu projeto.
Em determinado momento, eles se ajudam. Uma criança que quer descobrir o porquê as bandeiras de alguns países nórdicos são parecidas, recorre à ajuda do amigo que está estudando os povos Vikings. Outra criança que estuda arte rupestre compara sua linha do tempo com a de quem estuda as glaciações. Dois projetos que estudam tecnologia debatem o que aprenderam. Outras duas crianças se ajudam confeccionando um Livro da Vida.
E desta forma, cuidando do coletivo e de cada indivíduo, o semestre passa. As crianças desenvolvem suas múltiplas competências, muito além dos conteúdos. Sabem que são cidadãs. Sabem que existem leis que as defendem. Sabem atuar positivamente no espaço que é de todos. Sabem o valor do estudo, e que o conhecimento tem uma utilidade para a vida. Sabem ser colaborativos e agir como grupo, respeitando a diversidade. Sabem ouvir, dar sugestões e opinar. Sabem de coisas que aula nenhuma poderia ensinar.
Esta é a resposta para a pergunta do início do texto. E esta é a resposta que qualifica a educação brasileira.
Sigamos com este olhar humanizado!
Professor Rodrigo Toyama