A família do B, 8 anos, viajou por alguns dias. Na volta tivemos reunião e os pais relataram:
“Se quiséssemos saber onde estava o B era só procurar onde estava o guia. Ele sempre estava ao lado, prestando atenção super interessado! ”
Contaram também que o filho encantou as pessoas durante diversos passeios feitos. Sua curiosidade, perguntas, hipóteses e argumentos geraram questionamento nos adultos.
– Como vocês têm educado esse menino para que ele seja assim?
Então, eu questionei: E, o que vocês responderam?
-Uma vez numa reunião da escola a Regina disse uma coisa que foi determinante na vida da nossa família. Ela disse Brincadeira boa é brincadeira que sua! Então, a partir daquele dia decidimos minimizar as telas lá em casa. E, assim entendemos que fazendo eco com a escola a gente ajuda. Por exemplo, as assembleias que acontecem na escola. A gente vê que o B está cada dia mais seguro de suas opiniões, sabe o que quer, até reconhece que por vezes sua opinião é diferente da nossa e diz isso, e aceita o que a gente diz também. Ele não muda de opinião para agradar alguém, se muda é porque entende argumentos e concorda. E, isso vem também das mediações de conflitos que vocês tanto valorizam, né? E, tem também a escuta respeitosa que vocês fazem, respondem as perguntas, dão importância pra curiosidade das crianças. É isso que a gente aprendeu a fazer também. E, foi isso que nós respondemos para aquelas pessoas lá na viagem.
De repente, entraram na sala em que trabalho umas 10 crianças do F1. A C, menina de 9 anos, trazia nas mãos um guardanapo de papel onde um minúsculo passarinho, ainda sem penas jazia. Eles me contaram que o viram caindo do ninho lá na quadra da Assa, que quando juntaram ele ainda respirava. Vieram correndo falar comigo na esperança de que eu soubesse como cuidar desse bebezinho tão frágil. Ah, como eu gostaria de ter uma varinha mágica naquele momento. Sniff sniff. Observei o bichinho, encostei um dedo nele e constatei que estava gelado. Ele está morto – eu disse. Os olhares se encheram de lágrimas e ouvi uma voz baixinha:
– e agora, Rê?
– Bem, agora … já são 12hs. Falem com o Rô se ele acha que dá tempo de fazer o enterro ainda hoje ou se preferem fazer amanhã.
– mas onde o passarinho vai ficar até amanhã?
– ele pode ficar aqui na minha sala.
– você cuida dele?
– eu cuido sim.
Lá se foram as crianças em busca do Rodrigo. O D, menino de 11 anos, ficou ao meu lado, percebi seu olhar tristonho, afastei minha cadeira e ele sentou no meu colo.
– Tu estás triste por causa da morte do passarinho, D?
– Também, Rê. Mas, tem muita coisa junto
– É, eu sei.
– Ter que sair da escola, ir pra uma escola nova, de provas, de lição de casa, sem os amigos de tantos anos, com professores que não conheço, que trabalham de um jeito bem diferente, com tão pouco tempo de brincar…
– É, eu sei. Eu também me sinto triste, bem triste porque eu não conheço uma escola aqui perto que faça um trabalho que eu possa garantir para as famílias que vai ser um trabalho como o da Maré. Sabe, quando inventaram as escolas acharam necessário uniformes, disciplina, provas e todas essas coisas porque na época não queriam que as pessoas aprendessem a pensar sozinhas, era só para memorizar e aprender a repetir. Mas agora as escolas já sabem que precisam mudar, que é preciso muita gente pensando pra resolver tantos problemas! E, tu, D, tu fosse lá e fizesse a tal prova que eles pedem pra aceitar as crianças, e tu tirasse um notão, não foi?! Eu até fiquei orgulhosa porque tu aprendesse tanto aqui na Maré, sem precisar decorar nada, sem precisar tanta lição de casa, sem precisar de provas e podendo fazer todas as perguntas que querias, não é?! Então, tu tens muita competência, tu vais conseguir fazer novos amigos e aprender muito por lá. E a escola um dia vai mudar.
– Mas, você pode ir lá ensinar os professores daquela escola, Rê?
– Não, eu não posso ir lá, D.
Nesse momento as crianças vieram nos chamar para o enterro. Outro encerramento de ciclo. Dor. Lá nos fomos pra floresta. Rodrigo com pazinha em punho. Assim que escolhemos o local, as crianças saíram catando tumbérgias para decorar o túmulo.
O Rodrigo acendeu uma vela, falou de transformação. Então cavou, as flores foram colocadas, depois o passarinho, terra e mais flores. Ficou tão bonito! Um silêncio grande favorecia que os sentimentos se derramassem, queixinhos tremiam.
Então eu disse:
-Vamos fazer homenagens com palavras de agradecimentos? Quem quer?
– Você primeiro, Rê !
– Tá. Eu agradeço a energia vital que habitava nesse passarinho e que agora fluiu para outros lugares. Agradeço porque esse momento é importante pra gente entender que a vida é um ciclo.
Algumas crianças falaram também, depois o Rodrigo e a Karina F.
Então a MM, menina de 9 anos, levantou a mão:
Eu agradeço a oportunidade que esse passarinho deu pra gente pensar sobre o que é importante na vida. Que a vida é muito rápida, ele nem teve tempo de conhecer quase nada e isso é muito triste. Mas a gente pode entender que nós temos tempo e que por isso a gente precisa viver bem. E viver bem é saber que a vida é maior do que tanta coisa
Eu queria estar filmando essa fala tão singela e lúcida. ✨ Então, as palavras que escrevi aí são as que eu lembro e que a Karina F e o Rodrigo me ajudaram a resgatar.
Se estabeleceu novo silêncio. Eu queria chorar. Meu coração estava tão vivo, tão grato, tão feliz por poder viver com as crianças aquilo que eu considero realmente importante. A vida e seus ciclos. O respeito ao todo!
Então, me veio um impulso e me pus a cantar, gesticular e dançar uma música que não conheço a letra, mas gosto muito. Eu dizia somente: heia heia heia ho hei, heia heia heia ho hei
E de repente saiu espontaneamente um verso de despedida para o passarinho:
Olha, lindo passarinho, que nos mostras o que é viver
Faz agora do teu corpo o que o tempo permitir
Manda então para nós todos o amor que há em ti
(música: Reza do Vento – do Álbum Mãe D’água)
Acabo de sair de uma reunião com os pais da L, 9 anos. O pai me fez a seguinte pergunta:
– O pós pandemia declarou em todo o planeta um gap nas aprendizagens das crianças. Vocês já conseguiram resgatar?
– Sabe, primeiro precisamos entender de que aprendizagens estamos falando. Mas especialmente que, o humano aprende quando nutrido orgânica e emocionalmente. Nossa escola tem 24 anos. Nos 20 anos até a pandemia acompanhamos a separação de dois, e nos últimos 4 anos já tivemos mais de 10 casais se separando. Numa escola com 92 vagas ocupadas, isso representa mais de 10 por cento. Isso gerou uma desestrutura emocional significativa. Temos agora no planeta todo um alto índice de depressão e de suicídios, incluindo infantis. Como acomodar todas essas vivencias para que as aprendizagens formais aconteçam? E, são somente as aprendizagens formais que importam? Os conteúdos estão por todos os lados, certo? Importa que as crianças tenham interesses respeitados, e adquiram ferramentas para realizar pesquisas, e também saibam distinguir o que é fato e o que é fake news. Temos todos, famílias e professores, muito trabalho a realizar!
Bom estarmos juntos ❤️
Regina Pundek