Compartilho aqui uma AUTO AVALIAÇÃO do professor Rodrigo Toyama nesse encerrar de semestre.
Sua indignação frente a dificuldade de compreensão da sociedade sobre o que é importante e necessário que as crianças aprendam é minha também.
Convido-os à leitura e a manifestar seus comentários.
Regina Pundek
São Paulo, junho de 2024.
Carta de mim para mim mesmo
Hoje foi o dia do churrasco de celebração dos projetos do Fund. Cheguei em casa empesteado com o cheiro de fumaça. Tomei um longo banho e o odor parece que não sai. Coloquei a roupa para lavar, mas antes a deixei de molho para retirar o cheiro.
Mais impregnada do que aquilo que o meu olfato conseguia perceber, está a sensação de bem-estar.
E essa sensação não é causada apenas por um dia feliz para mim e para as crianças, mas por aquilo que me proponho a fazer enquanto educador.
No churrasco passado, lembro que a data coincidiu com o encerramento de ciclo do grupo de Letrinhas. Eu estava cheirando a fumaça, descalço, com os braços e mãos sujos de carvão, e os pés e canelas sujos de terra. Eu disse à Cátia o quanto me era estranho eu estar daquele jeito,porque a escola estava cheia de famílias. A Cátia respondeu:
-O que dá pra ver é um professor entregue à atividade e às crianças.
E é sobre isso que se trata essa sensação de bem-estarque sinto hoje. É porque sei que vivencio o nosso PPP come pelas crianças.
Entretanto, no fim da tarde, chega a mim um questionamento vago sobre a aprendizagem das crianças. O que elas estão aprendendo? Onde estão os conteúdos? Elas estão atrasadas em relação às crianças de outra escola?
Por isso, decidi escrever. Éassim que se dá a minha digestão sobre as coisas. Tal qual o processo fisiológico, escrevendo eu consigo separar o que vai me nutrir daquilo que vai se tornar excremento.A ver.
De manhã eu havia levado as crianças mais velhas da escola para fazer as compras do churrasco.Com autonomia, elas consultavam a lista de compras e iam à cata dos produtos que precisavam. Comparavam preços, pesos, e qualidade dos legumes.
Passaram a compra no caixa e fizeram o pagamento, calculando o troco. Perceberam que a moça do caixa arredondou a nossa compra em R$ 0,04. Gentileza e praticidade dela.
As criançasajudaram a empacotar as compras e a colocar no porta-malas do carro da Cátia. Metade decidiu subir para a escola de carro, e metade apé, comigo. E assim, partimos para a escola, com os meninos correndo ladeira acima para chegar antes das meninas, que estavam de carro.
Descarregaram as comprase, sozinhos, levaram os produtos para a sala do Fund.
Reunimos todas as crianças na quadra, e as dividimos em dois grupos: um assumiria a churrasqueira comigo, e outro ajudaria a preparar os alimentos.
O grupo que estava comigo na churrasqueira agregava crianças de 06 a 10 anos. Estavamcomigo o menino que tem um mês de Maré, e o menino que comemorou todos os seus 10 aniversários na escola.
As crianças rapidamentese dispuseram a ajudar. Algumas fizeram um tremendo vai-e-vem para buscar utensílios na cozinha. Outras, ajudaram a acender e a ventilar o forno e a grelha. Outras, ajudaram a cortar as carnes que saíam, e outras organizavam a bancada.
Enquanto isso, o grupo que preparava o alimento, descia com assadeiras cheias de abobrinhas, batata doce e brócolis. Aquelas crianças também fizeram um delicioso vinagrete,que foi a estrela do nosso churras.
No decorrer do processo, as crianças ainda brincavam. Algumas queriam trabalhar mais, porque gostam da labuta. Outras dançavam o samba que deixei tocando. Outras rodeavam e rodeavam, ansiosas pelo churrasco a sair. E tudo corria bem.
À medida que o dia avançava, as crianças ajudavam também a organizar as bancadas, mesas e bandejascom as louças sujas. Vai-e-vem à cozinha novamente. Todos colaboravam em harmonia.
Mais tarde, organizamos a sobremesa: açaí, sorvete e banana. As crianças se esbaldaram. Mas também ajudaram na organizaçãoantes e depois de saborear os doces.
Toda essa vivência me fez pensar sobre como conduzi esse semestre, e como ele se imbrica à digestão que este texto me propõe.
Se eu tivesse que escolher categorias de análise para o semestre, eu elencaria agora: vivências, grupo, Fazer, cidadania, desenvolvimento socioemocional, pertencimento, integralidade da criança, infância, aprendizagem significativa.
No decorrer deste semestre, optei por integrar grupo. Há 04 crianças novas comigo, além das 04 que vão sair da escola, e as 04 neuroatípicas. Muitas demandas para equilibrar.
Então, escolhi trabalhar o pertencimento ao grupo, através de um projeto que me fez brilhar os olhos: a manta térmica para a oficina.
Primeiro, preciso ressaltar que sim, o caminho pelo qual vamos percorrerno semestre ou no anoé escolha do professor e da escola. Por mais que tenha passado por um processo de escuta ativacom as crianças, eu fiz escolhas, arregimentadas pelo nosso PPP.
Escolhi fazer com que as crianças resolvessem um problema, mobilizando uma série de habilidades, ao invés de ensinar muitas regras gramaticais. Escolhi que se engajassem em um projeto ligado às emergências climáticas que estamos vivendo, do que fazê-las desenhar mapas. Escolhi que desenvolvessem habilidades práticas à montagem de figuras geométricas tridimensionais.
Não que os saberes não estivessem lá, ou que não estivesse sendo trabalhadas questões importantes no desenvolvimento da linguagem e do raciocínio lógico-matemático de cada criança. Ao contrário. Os conteúdos estavam sendo trabalhados de forma prática, com utilidade de uso.
Portanto, foi uma escolha bastante consciente oferecer mais tempo de qualidade para o desenvolvimento de habilidades amplas do que cumprir currículo nacionalizado.
O segundo ponto é que o professor precisa estar envolvido no seuprocesso junto com as crianças. Caso contrário, tudo o que acontecer correráo risco de se tornar uma coleçãode ensinagensvazias de significado.Como diz Rubem Alves, o professor é um provocador de espantos. A começar consigo mesmo, acrescento eu.
Um projeto precisa empolgar, a ponto de fazer o professor quebrar a cabeça para resolver o problema em questão. Tem que ser desafiador paraa criança, mas parao professor também.
Não se trata da romantização da profissão docente. E isso não tem a ver com passar horas a mais fazendo planejamentos. Tem a ver com brio, com oferecer o melhor que se tem às crianças. Tem a ver com despertar na criança a curiosidade e o engajamento, ao mostrar-se curioso e engajado. É compreender que a vivência vai ensinar muito mais do que o palavratório.
Com o projeto da manta térmica, discutimos sobre habitações com pouco impacto no meio ambiente, com ênfase nas culturas indígenas, tão poeticamente trazido pela Literarte da Regina. Assistimos a vídeossobre bioconstrução, fizemos
resumos e anotações de informações importantes, para que pudéssemos observar a nossa oficina, e compreender quais ações a tornariam um espaço ecológico.
Tomamos uma decisão, coletivamente, que era construir um forro de caixas longa-vida, porque o principal problema daquele lugar é o calor que faz no meio da manhã.
Fizemos experiências com temperatura, observando a variação de sensações térmicas nos diversos lugares da escola. Estudamos sobre temperatura corporal, e como o nosso corpo percebe e reage às mudanças de temperatura. Fizemos experiências com a telha propriamente dita, para verificar se a caixa longa-vida isolava mesmo a temperatura. Também testamos resfriar a oficina por fora, com água, para descobrir se a telha de fibrocimento muda rapidamente ou lentamente de temperatura.
Depois, engajamo-nos na campanha de arrecadação das caixas, pois medimos o nosso telhado, calculando a sua metragem, e descobrimos que precisaríamos de quase mil caixas longa-vida.
As crianças gravaram um vídeo, explicando sobre o problema, a descoberta de uma solução, a conexão deste problema com a crise climática e a gestão de resíduos, e fizeram um apelo para que as famílias da escola doassem caixaslonga-vida para o nosso projeto. Algumas crianças fizeram campanha nas suasfamílias, e outras,nos seus condomínios.
Paralelamente, pesquisamos as propriedades das telhas de fibrocimento e das caixas longa-vida, com a leitura de textos informativos e a confecção de cartazes explicativos sobre o tema.
Calculamos também os custos do projeto, descobrindo saldos, despesas feitas e despesas a serem quitadas.
Visitamos o Sitiom para conhecer habitações sustentáveis, e de lá, verificamos a possibilidade de construir um forro de bambus. Com o Vinícius do CES, aprendemos sobre a forração de caixas longa-vida e a sua durabilidade. Aprendemos também sobre compensação ecológica.
Fomos à casa do Miguel Luz para coletar bambus.Novamente, tivemos que calcular quanto material precisaríamos.
Com as caixas na escola, trabalhamos o procedimental: cortar, lavar, passar, pintar. As crianças usaram esponja, detergente, tesoura, ferro de passar, grampeador, pincéis e rolos. Desenvolveram suas habilidades manuais e práticas. Exercitaram trabalhar em grupo, e ter autonomia para gerir suas estações de trabalho.
Também fizemos comemorações a cada meta atingida do projeto, em um movimento de tomada de decisão que oportunizou muita discussão, fazendo com que as crianças se posicionassem, opinassem, e acolhessem a opinião dos outros.
E, para que cada criança conseguisse participar disso tudo, foram trabalhados os conteúdos segundo cada necessidade. Algumas crianças aprenderam a decompor situações-problemas, enquanto outras precisaram jogar Nunca-Dez para compreender as casas decimais. Outrascriançasaprenderam o algoritmo da divisão de centena por dezena, enquanto outras aprenderam a multiplicar. Outras crianças aprenderam a escrever até o número 60, e outras, a contagem de 10 em 10.
Em Linguagens, houve quem precisou aprimorar a pontuação dos seus textos, outras precisaram aprender a escrever em parágrafos. Algumas crianças trabalharam a revisão ortográfica de sua escrita, enquanto outras aprofundavam a sua interpretação de texto.Aprenderam também a estrutura da escrita cursiva.
Isso tudo é ferramenta. São instrumentos que ajudarão as crianças a elaboraremas suas pesquisas e a desenvolver os seus projetos de resolução de problemas reais.
Entretanto, muitos compreendem esses instrumentos como fim.E não é possível que, diante do que foi narrado, não percebam a riqueza e variedade de aprendizagens que aconteceu para todos nesse processo.
Pois bem. Digeri o digerido. Rumino mais uma vez de que inovar em educação não é criar um método diferentão, ou fazer uma aula com musiquinha para memorizar conteúdo.
Inovar é quebrar paradigmas. E só percebe isso quem está comprometido com essa agenda.
Rodrigo Toyama